Em extensa matéria publicada em El País, Alice de Souza e Regiane Oliveira contam sobre a estranha história de L, que entrou em no Hospital Memorial Guararapes, em Jaboatão dos Guararapes (PE), grávida de gêmeos, saiu com um só e há dois anos persegue respostas sobre o destino do filho, baseada em duas ultrassonografias, realizadas nos quarto e sétimo mês de gestação, as quatro consultas de pré-natal e as cinco pessoas que auscultaram os fetos entre a chegada dela à unidade de saúde e o momento do parto, sempre duas imagens e dois corações, uma gravidez gemelar.
Polícia e MP investigam caso que despertou suspeita de tráfico de criança
No inquérito, que corre em segredo de justiça, a polícia conclui que não foi possível constatar que L. estava realmente grávida de gêmeos, mas tampouco apresentou elementos que negassem esse fato. Sem explicação razoável, L. está há dois anos presa entre a esperança e o medo.
O parto
A adolescente havia agendado para o dia 6 de setembro mais uma consulta de pré-natal. Com 37 a 38 semanas de gestação, chegou ao Instituto Humanize, uma organização social de saúde que realiza acompanhamento gratuito para as gestantes; ali, foi informada por uma médica de plantão sobre a necessidade de acelerar o parto, pois eram gêmeos, ela era nova e a barriga estava muito apertada.
Daí em diante, foram 23 horas até o momento do parto. Inicialmente marcado para a meia-noite, o procedimento foi adiado para o dia seguinte. Como era uma gravidez de gêmeos, precisaria de dois pediatras em sala, mas só havia um disponível no hospital. Segundo L., todas as pessoas que entraram no quarto para examiná-la reforçavam: os dois bebês estavam bem. O batimento cardíaco fetal (BCF) foi examinado cinco vezes entre a internação e o parto. “19h50, BCF1: 140 bpm; BCF2: 158 bpm”, estava escrito em letra cursiva no prontuário da adolescente em relação aos dois fetos. Esse é um dos exames realizados para garantir que nem Lucas nem Luan tivessem sofrimento fetal. Por isso, a ausculta se repetiu às 22h10, às 8h34, às 10h27 e às 12h30.
L. foi chamada para o procedimento por volta das 14h. Daniela e a filha se separaram, como manda o protocolo hospitalar, e só voltaram a se encontrar no leito da cirurgia. “Me informaram que iriam buscar uma roupa para mim, o que demorou meia hora”, afirma Daniela. Enquanto isso, L. foi levada para uma sala, onde contaram como seria a cesárea, e que, talvez, os bebês precisassem de UTI. Uma das profissionais chegou com os dois cartões de visita, perguntou o nome do pai e da mãe, e anotou em cada um deles o nome dos meninos. L. perguntou pela mãe e foi informada que a futura avó aguardava uma roupa para entrar na sala de cirurgia. “Aí chegou a doutora e me perguntou: ‘mas você não acha que é muito nova para ser mãe de dois? Que não é muito trabalho? Como vai ser criar dois meninos? Eu estava muito nervosa, só balançava a cabeça. Queria a minha mãe”, conta L., sem saber informar o nome da profissional que fez o comentário.
A médica Mara R. Guarim Silva, que realizou o ultrassom, voltou a confirmar seu diagnóstico à polícia, que realizou também uma perícia nos equipamentos de ultrassom das duas clínicas e não constatou nenhum problema que pudesse levar a um falso diagnóstico. Em seu depoimento, a médica afirmou que não havia nenhuma possibilidade de a adolescente não estar grávida de gêmeos, tampouco de ter sido acometida de um eventual nódulo, como um mioma —um tipo de tumor benigno que se forma na região do útero, e que poderia, em último caso, ter sido confundido com um feto. “Mioma não tem batimento cardíaco”, disse a médica, que explicou que erros de diagnóstico de imagens são mais comuns no começo da gravidez.
A primeira ultrassonografia, por sua vez, foi realizada pela médica Andrea Karla Gabão, da clínica LP Saúde, quando L. estava com 19 semanas. No inquérito, a médica que há 14 anos realiza ultrassonografias, confirmou seu laudo inicial: a vítima estava grávida de gêmeos idênticos; tinha uma gravidez normal, sem risco para os bebês e para a mãe, que poderia chegar até a 40ª semana; e que os fetos estavam em perfeito estado na data em que realizou o exame.
Nos momentos que antecederam ao parto, a preocupação tomou conta de mãe e filha. Já no centro cirúrgico, L. pediu para ir ao banheiro e, quando voltou, encontrou uma sala cheia. Todos pareciam estar lá, menos sua mãe. Seis estudantes de medicina do Centro Universitário Maurício de Nassau foram autorizados a participar do parto, uma vez que o Gaurarapes é um hospital-escola. No inquérito, a médica Helaine Rosenthal afirma que o protocolo é deixar apenas dois alunos por parto, mas como o plantão estava calmo, ela permitiu os seis alunos. L. não tinha ideia que tantas pessoas iriam assistir ao parto.
O protocolo do centro cirúrgico diz que os acompanhantes só podem entrar na sala de parto quando a gestante já estiver anestesiada e o campo cirúrgico —um pano que cobre a mãe e serve de barreira física para fluídos— posicionado. Médicos narram o que aconteceu do outro lado da cobertura, uma vez que a mãe não tem visão total do que está acontecendo com ela. A médica que realizou o parto, Juliana Souto, afirmou à polícia que só iniciou a incisão quando a mãe de L. já estava ao lado da filha. No entanto, Daniela lembra que quando entrou na sala “já havia um cheiro de couro queimado na sala”, o que poderia indicar o início da corte da cesárea. “Não reparei se estava aberta, mas pelo cheiro — já fiz cesárea — creio que sim”, afirmou. A hipótese, levantada em depoimento pela Dra. Helaine, é que a cirurgia já tivesse sido iniciada quando Daniela entrou, o que justificaria o cheiro provocado pelo bisturi elétrico ao fazer a incisão na pele.
A Dra. Juliana afirmou à polícia que no momento que identificou que havia apenas um bebê mandou que a equipe mantivesse a porta do centro cirúrgico fechada para que não entrasse ou saísse ninguém até que a jovem mãe entendesse o que estava acontecendo e a médica Dra. Helaine fosse chamada e pudesse confirmar que só existia um bebê.
Os trinta minutos de separação entre mãe e filha são o elemento fiador das duas. Para elas, nesse intervalo podem ter iniciado o procedimento e retirado uma das crianças. Daniela procurou a Polícia Civil e o caso saiu na imprensa local. A obstetra responsável pelo parto não gostou. “Sua mãe deveria procurar as clínicas fuleiras”, teria dito Dra. Helaine, ainda no hospital. Antes de sair do quarto, fez um acréscimo. Orientou a adolescente a deixar os gêmeos “para o próximo ano”.
No inquérito, o relato da médica Juliana Soto, dos dois pediatras, da anestesista, do instrumentador cirúrgico e das três enfermeiras que acompanharam o parto é bem semelhante. Todos viram a adolescente ser sedada, ficaram surpresos ao constatarem que só havia um bebê e só saíram após o final da cirurgia. “Vi a placenta ser retirada, jogada fora no lixo hospitalar, realizada a limpeza do útero, colocado no lugar novamente e iniciada a sutura na barriga de L.”, disse uma das enfermeiras que acompanhou a adolescente até a sala de recuperação.
Os relatos dos estudantes também são similares. Eles afirmam terem entrado quando a jovem já estava na sala e terem saído logo após o nascimento de Lucas. O que pareceu incomodá-los aconteceu após o parto. Todos contam que haveria um pedido para que confirmassem que a Dra. Helaine estaria o tempo todo na sala de cirurgia. Nenhum deles afirma, porém, ter ouvido o pedido diretamente da médica, muito menos a razão para tal pedido. Segundo eles, a coordenadora também tentou marcar uma reunião entre os estudantes e advogados do hospital antes dos depoimentos, mas essa reunião não chegou a acontecer. Isso porque alguns estudantes levaram seus próprios advogados ao depoimento. Todos afirmam terem recebido ligação da coordenadora no dia em que iriam falar com a polícia, mas ninguém atendeu. Apenas uma das alunas confirma que recebeu uma mensagem de WhatsApp onde a médica perguntava como tinha sido na delegacia.
A Dra. Helaine, por sua vez, disse à polícia que ela mesmo fora induzida ao erro pelos exames de ultrassom. A coordenadora do hospital atendeu L. em sua consulta pré-natal realizada em 5 de julho, quando a adolescente estava com 26 semanas. A médica é experiente, tem mais de 30 anos de atuação em ginecologia e obstetrícia, porém, afirmou não possuir especialização em radiologia nem em medicina fetal, por isso levou como certo o que estava no laudo escrito do exame de ultrassonografia. Na consulta, chegou a anotar no prontuário da adolescente os batimentos cardíacos dos dois “possíveis fetos”. No depoimento, ela esclareceu que o segundo batimento pode ter sido de transmissão do coração da mãe ou mesmo do cordão umbilical. Dra. Helaine disse ainda que participou do parto e que, à exceção de duas enfermeiras, todos os demais assistiram do começo ao fim da cirurgia, versão não corroborada por todas as testemunhas, como é o caso dos estudantes de Medicina que negaram tê-la visto desde o início, conforme o depoimento nas mãos da Justiça.
Todos os profissionais ouvidos pela reportagem afirmaram que nunca viram em sua carreira um caso de gravidez gemelar atestada por ultrassonografia se mostrar falsa no momento do parto. Um recurso que poderia evitar suspeitas para o hospital, neste caso, seria o acesso às câmeras de segurança. Ninguém soube dizer, no entanto, por que as câmeras, localizadas fora da sala de cirurgia, não estavam funcionando, nem se elas continuaram quebradas após o ocorrido
Os casos de erros de ultrassonografia de gravidez de gêmeos que se mostram falsas no momento do parto são muito raros, ainda que existam registros no Brasil. Em setembro de 2019, a Polícia Civil de Quirinópolis (GO) investigava o caso de uma mulher grávida de gêmeos, que, no momento da cesárea, deu à luz apenas um bebê ―apesar dos quatro ultrassons que atestavam a existência de dois fetos. Em 2018, a Prefeitura de Alagoa Grande (PB) foi condenada a pagar 10.000 reais por erros de diagnóstico cometidos no hospital municipal durante o pré-natal de uma mulher, também grávida de gêmeos, mas que teve apenas uma criança. O mesmo aconteceu em 2012, em Igatu (CE), onde o Hospital Regional Doutor Manoel Batista de Oliveira foi condenado a pagar 5.000 reais por erro no diagnóstico de gravidez gemelar.
Diz que se chateia pela disputa de versões com as médicas que fizeram os exames de imagem. “Seria mais elegante e ético das ultrassonografistas dizerem que o aparelho é de má qualidade, que o exame é passível de erro e que elas são radiologistas e não ultrassonografistas, o que é uma diferença. Mas elas sustentaram [em depoimento] a versão que diz que a gente sumiu com uma criança. Não tem por que estarmos escondendo um cadáver ou traficando menino. Temos nome a zelar”, afirma.
Infelizmente, só reputação não é garantia em suspeita de tráfico de pessoas. Seja para exploração sexual, trabalho análogo à escravidão ou venda de órgãos, o tráfico é um crime invisível e muito lucrativo. Não à toa o caso de L. é acompanhado de perto por duas ONGs internacionais, o Instituto Latino-Americano de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (ILADH) e o Freedom Fund.
Pernambuco tem no currículo o único caso de tráfico internacional de órgãos levado à justiça. Em 2003, a Polícia Federal desarticulou uma quadrilha de tráfico internacional de órgãos humanos. Mas não é preciso ir tão longe no tempo. Em outubro de 2019, duas mulheres foram presas em flagrante tentando negociar a venda de uma criança. O crime aconteceu no Hospital Memorial Guararapes, o mesmo onde L. esperava sair com os dois filhos no braço em setembro de 2019.
O hospital chegou a abrir uma sindicância interna para apurar os fatos. “A conclusão não apontou qualquer indício que justificasse medida de punição administrativa a nenhum dos envolvidos.” Em setembro de 2020, o Instituto Humanize, onde foi realizado o pré-natal de L., foi alvo da Operação Desumano, da Polícia Federal, Controladoria-Geral da União (CGU) e Ministérios Públicos Federal e Estadual por indícios de irregularidade, pagamentos indevidos e desvio de recursos na execução de contratos para enfrentamento da pandemia da covid-19. O caso segue em investigação.
O histórico gemelar na família reforça a sensação de que há lacunas a serem preenchidas no caso. Ao redor de L., todos acreditam que Luan existe e está vivo. Ao menos, que ocorreu algum erro durante a cirurgia. Na sala onde a adolescente conta sua história, se somam os olhares de revolta e pedidos de justiça de seus familiares. “Fizeram alguma tramagem ali, no hospital, na hora de dar a roupa para a mãe dela. Não sei explicar, ou foi tráfico de crianças ou cortaram o menino. Na frente, o hospital é particular e a gente sabe, para esse povo, rico é quem manda”, reclama Jefferson, o pai dos meninos, que é interpelado por um tio de L. “Se a pessoa ficar calada, nunca vai descobrir. Não é porque a pessoa é pobre que vai ficar com medo”, diz Manoel Silva, de 46 anos.
A família não concorda com o resultado da investigação policial, que, até o momento, não indiciou ninguém. Em nota, o MP-PE afirmou que o inquérito policial foi encaminhado para a 12ª Promotoria de Justiça Criminal de Jaboatão. “No momento, o caso está em fase de investigação, com o apoio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco)”
Fonte: El Pais
Para ler a matéria na íntegra, clique aqui
Mín. 21° Máx. 34°