
E vale o destaque: a participação dos praticantes de “Grau” não é o maior problema em relação aos sinistros viários, na sua maioria envolvendo motos.
Sim, percebe-se no artigo, que não é a prática do esporte “GRAU” que provoca a epidemia de sinistros viários. Ainda que haja riscos e comportamentos questionáveis envolvidos — como em diversas outras atividades que expõem a integridade física, a exemplo de dirigir sob efeito de álcool, ou mesmo práticas esportivas como automobilismo, balonismo, alpinismo etc. — é preciso reconhecer que os acidentes de trânsito são resultado de fatores estruturais mais amplos. Assim, o foco do debate deve ir além da estigmatização de grupos específicos e se voltar para soluções que protejam vidas, especialmente das populações mais expostas ao risco.
Segundo a autora, a fadiga e uso de substâncias são o pano de fundo de uma epidemia silenciosa. Embora campanhas de segurança viária enfatizem o uso do capacete e o controle de velocidade, fatores humanos como cansaço, estresse, consumo de bebidas alcoólicas e drogas permanecem subnotificados e subtratados.
“Os estimulantes são frequentemente utilizados para compensar a fadiga. Anfetaminas, cafeína em altas doses e bebidas energéticas retardam o sono, mas reduzem a atenção seletiva e a capacidade de julgamento. Isso cria uma ilusão de desempenho, quando, na verdade, há redução da coordenação motora e aumento do risco de erro”, explica a pesquisadora Daniele Mayumi Sinagawa, do Departamento de Medicina Legal, Bioética, Medicina do Trabalho e Medicina Física e Reabilitação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Para Daniele, até a terminologia usada nesses casos precisa evoluir: “Instituições como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde recomendam substituir a palavra ‘acidente’ por ‘sinistro viário’, porque o evento é evitável. Essa mudança de vocabulário desloca o debate da fatalidade para a responsabilidade compartilhada e para a prevenção”.
Entre o cansaço e o uso de substâncias
Os números trazidos pela autora, são alarmantes: “Em 2018, cerca de 11,4% dos motoristas nas capitais brasileiras relataram dirigir após o consumo de bebidas alcoólicas. Em 2021, o Brasil registrou 10.887 óbitos atribuíveis à mistura de álcool e direção, o que equivale a aproximadamente 1,2 morte por hora. No caso específico de motociclistas, estudo do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da USP mostrou que cerca de 20% das vítimas haviam consumido álcool ou outras substâncias antes do sinistro.”
Daniele acrescenta que, entre motociclistas autônomos e entregadores, “a ausência de regulação de jornada e a pressão por entregas rápidas aumentam a exposição à fadiga e ao uso de substâncias, enquanto trabalhadores com vínculo formal tendem a ter rotinas mais estáveis e pausas regulares”.
Em síntese, o Brasil compartilha com países de rendas média e baixa o duplo desafio de lidar com fadiga ocupacional e uso de substâncias em um contexto de informalidade laboral e longas jornadas, agravado pela ausência de regulação efetiva da jornada de motociclistas profissionais e de fiscalização toxicológica rotineira.
Nos países de alta renda, embora as taxas sejam menores, observam-se avanços como testagens toxicológicas obrigatórias, programas de descanso para condutores e campanhas educativas sobre sono e uso de substâncias — estratégias ainda incipientes na realidade brasileira.
Impacto no SUS e no Sistema Previdenciário
Os números confirmam que o Brasil vive uma epidemia de lesões e mortes sobre duas rodas. Em 2020, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 190.628 internações por lesões de trânsito, sendo 61,6% de motociclistas. No mesmo ano, ocorreram 32.716 óbitos, dos quais 36,7% foram de motociclistas.
Entre 2011 e 2021, a taxa de mortalidade específica por motociclistas manteve-se em torno de 5,8 mortes por 100 mil habitantes. No mesmo período, as internações nesse grupo cresceram 55% no SUS, acompanhando a duplicação da frota nacional de motocicletas, que saltou de 18,4 milhões para 30,3 milhões de veículos.
O perfil é consistentemente masculino: em 2021, 88% dos mortos em acidentes de motocicleta eram homens, e a maioria tinha entre 20 e 39 anos, faixa etária de maior produtividade econômica.
O resultado é um impacto social e previdenciário expressivo, considerando-se que o trabalhador jovem, ativo e principal provedor familiar é o mais afetado pelo problema.
Enfrentando o desafio
“O enfrentamento do problema requer uma mudança estrutural: do foco punitivo para uma abordagem de saúde pública e ocupacional”, ainda segundo Daniela.
Reconhecer que cada sinistro é evitável é o primeiro passo para salvar vidas. Enquanto o país discute limites de velocidade e uso do capacete, a fadiga e os estimulantes, que sustentam essa engrenagem, continuam invisíveis. “A linguagem já mudou”, resume Daniele Mayumi Sinagawa, “agora precisamos mudar a prática”.
Daniela Barros é jornalista, com especialização em jornalismo social pela PUC-SP e mestranda no Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP). Escreve sobre medicina há 23 anos, colaborando com diversas publicações especializadas no tema.
O artigo na íntegra aqui: https://l1nq.com/9foiU
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