
Ao receber os turistas, a maioria das cidades se orgulha de sua gastronomia e vinhos, de ser uma joia do barroco, ou de desfrutar das melhores praias de sua região. Quando o visitante chega a Cândido Godói, município brasileiro do estado do Rio Grande do Sul que em 2007 não alcançava 7.000 habitantes, o que se encontra é um pórtico com lema escrito em enormes letras góticas: "Cidade Pomar. Terra dos Gêmeos"
A primeira parte deste "cartão de visita" é entendida antes mesmo de entrar em Cândido Godói, quando o viajante dirige pelas estradas da região de Santa Rosa. Muitas casas são ladeadas por jardins com pequenos pomares. Entre as moradias não é estranho encontrar áreas nas quais a terra revolta ainda está coberta de palha de milho.
A segunda parte do pórtico, aquela que fala da “terra dos gêmeos”, demora um pouco mais para ser entendida. Embora não muito. Se o turista não estivesse avisado ao deixar para trás o símbolo das letras góticas ao entrar na cidade, a primeira coisa que pensaria é que se dirigiu ao continente errado e está dirigindo por uma região da Bavária. Em seu caminho, ele encontra moradores de pele bronzeada, mas loira, com olhos claros e brilhantes e traços caucasianos.
À medida que se aproxima da localidade Linha São Pedro (a cerca de quatro quilômetros), a sensação do visitante é que, de cara, enlouqueceu: muitos daqueles vizinhos de cabelos dourados parecem repetir-se por todo o lado. Frequentemente, eles são vistos andando em pares e em duplicata, procurando alguma sombra para lidar melhor com o calor opressivo da tarde. Alí, a cada dez nascimentos, um é de gêmeos.
A média nacional de nascimentos de gêmeos no Brasil é dez vezes menor, de 1%. Em geral, considera-se que os nascimentos com gêmeos têm uma incidência bastante modesta, uma em cada 80 gestações, embora existam estudos recentes que mostram que essa média já teria aumentado para uma em 45 devido aos tratamentos de reprodução assistida e ao fato da idade das mulheres ao se tornarem mães.
O suspeito halo nazista
Em 2015 a BBC divulgou que 90 pares de gêmeos residiam em Cândido Godói, o que representaria quase 3% de sua população atual. O surpreendente se reflete em outras informações divulgadas em 2009 pela National Geographic: das 80 famílias então distribuídas pela Linha São Pedro, cerca de 40 tiveram gêmeos.
Segundo a BBC, que cita fontes da Prefeitura de Cândido Godói, 35% dos nascimentos registrados no município entre 1959 e 2014 trouxeram gêmeos para o mundo. Estudo realizado por Ursula Matte, especialista do Serviço de Terapia Genética do Hospital de Porto Alegre (Brasil), também conclui que 40% dos gêmeos nascidos durante sua pesquisa (entre 1990 e 1994) eram idênticos (monozigóticos) enquanto 60 % não eram (dizigóticos).
Como esses números são explicados?
Nos últimos anos, diferentes investigações tentaram lançar luz sobre o que acontece na "Terra dos Gêmeos". A explicação mais famosa que atraiu a atenção de meio mundo para Cândido Godói foi dada em 2009 por um veterano jornalista argentino, Jorge Camarasa, que ao longo da vida escreveu vários ensaios sobre o êxodo nazista na América do Sul. Em seu livro "Mengele: o Anjo da Morte da América do Sul", Camarasa lançou uma teoria que deixou os moradores de Cândido Godói espantados e despertou o interesse do país.
Suas investigações indicam que a causa é o médico nazista Josef Mengele, o "anjo da morte" de Auschwitz. Sua teoria é simples. Escondido no Brasil, Mengele relutava em abandonar os experimentos macabros que havia começado em Auschwitz para fortalecer a raça ariana. O motivo de ter escolhido Cândido Godói é por causa de sua grande população de descendência alemã, loira e de olhos azuis. De acordo com Camarasa, Mengele se passava por um veterinário que também desempenhava pequenos serviços médicos, como tratar varizes ou dentista. Com essa desculpa, ele teria percorrido as fazendas oferecendo seus serviços e, de alguma forma, teria conseguido aplicar um tratamento que favorecesse aqueles descendentes de alemães dando à luz gêmeos.
Camarasa apoiou sua teoria com centenas de entrevistas. “Há depoimentos de que atendia mulheres, acompanhava a gravidez, tratava com novos tipos de medicamentos e preparações e que falava da inseminação artificial em seres humanos”, explicou em 2009. “Não se sabe ao certo em que data Mengele chegou a Cândido Godói, mas os primeiros gêmeos nasceram em 1963, ano em que ouvimos relatos de sua presença pela primeira vez. " Em seu livro, ele também coleta o testemunho de pessoas que tiveram um relacionamento com Mengele sem saber sua verdadeira identidade.
Tentando apagar Mengele
A ideia de que suas origens estavam ligadas a um personagem como o médico nazista não os empolgou e decidiram recorrer a outros especialistas em busca de explicações menos terríveis. Recorreram à geneticista Lavinia Schuler-Faccini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sua equipe retomou uma pesquisa antiga que já havia começado na década de 90. A conclusão é diferente daquele de Camarasa. O estudo analisou 42 mães na comunidade que haviam alcançado aquela taxa exorbitante de gêmeos. Neles ele detectou um gene que não é determinante, mas "predispõe à gravidez de gêmeos".
As relações consanguíneas, entre outros fatores, também teriam contribuído para esse fenômeno. Suas causas estariam, então, relacionadas ao que se conhece como "efeito fundador": os primeiros colonizadores já teriam esse gene modificado, que se perpetuaria ao longo dos anos.
O estudo de Faccini também produziu outra conclusão que desmonta a teoria de Camarasa. Apesar do que afirmava o jornalista argentino, destaca o geneticista, o fenômeno na Linha São Pedro remontaria a antes da suposta chegada de Mengele. “Há famílias que tiveram cinco gerações de gestações gemelares, desde a chegada à região”, diz Schuler-Faccini depois que sua equipe mergulhou nas árvores genealógicas da aldeia.
“A maioria dos gêmeos que observamos em Cândido Gódoi estão agrupados em famílias e isso já acontece há muito tempo, muito antes de Mengele. Isso aponta para um fator genético. Não tem nada a ver com os nazistas. Principalmente, porque essa tendência é anterior a eles e porque não teriam como conseguir algo assim naquela época ", insistiu Matte à BBC em 2015.
Como parte do estudo de Matte, mais de 6.600 certificados de batismo das últimas oito décadas foram analisados. Uma de suas principais conclusões é que o fenômeno que Camarasa atribui ao criminoso de Auschwitz remonta pelo menos aos anos 1930, muito antes mesmo de Mengele colocar os pés no Brasil.
Os especialistas apontam para outra incongruência: se o número de gêmeos é consequência do tratamento de Mengele, como é possível que a taxa permaneça alta quatro décadas após sua morte? O Dr. Gary Steinman explicou em 2009 que mesmo se Mengele tivesse medicamentos à frente de seu tempo, eles não durariam mais do que uma geração. Para Steinman, é praticamente impossível para Mengele ter os conhecimentos necessários para atingir os objetivos que lhe foram atribuídos por Caramasa. Nos últimos anos, foram formuladas outras teorias que procuram explicar o fenômeno de Cândido Godói. Alguns apontam para uma influência decisiva de fatores ambientais, como a água.
Fonte: Magnet - Carlos Prego
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