O mais recente episódio de conflito entre Israel e palestinos teve início no dia 7 de outubro, quando o grupo militar islâmico Hamas, em resposta a uma operação israelense no complexo religioso Al-Aqsa, atacou a fronteira sul do país com mísseis e operações terrestres.
Desde então,
mais de 8000 palestinos já foram assassinados por ataques de Israel na Faixa de Gaza, sendo que o número de
mulheres, idosos e crianças equivale a mais de
70% dessa quantia, segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde da Palestina.
Com a guerra,
o deslocamento forçado tem atingido os civis palestinos que buscam sobreviver, o que envolve acordos diplomáticos e abertura de corredores humanitários.
A principal passagem, pelo Egito, causa polêmicas, visto que Israel busca deslocar milhões de pessoas para a região da península de Sinai, algo considerado um "crime de guerra" pelo Egito.
Alguns poucos, com sorte, escapam da realidade brutal do cerco a Gaza. Como é o caso de Mohammad (nome trocado por questões de segurança), que fugiu do local desde meados de 2019. Nascido em 1995 e ainda criança durante a chamada "segunda intifada" — continuação das revoltas populares contra Israel, iniciadas em 1987 com a 'primeira intifada' — Mohammad completou o ensino básico em Gaza e trabalhava como arqueólogo, mas sempre desejava sair do local.
Em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil, o refugiado detalhou sua infância e adolescência em Gaza.
"Desde criança eu nunca havia visto um soldado israelense, porque meus pais me escondiam quando eles entravam (...) fiz faculdade na Universidade de Matemática e Educação. Depois desse tempo todo, eu vi que tem muitos formados lá, mas eles não têm emprego, não têm nada. Eles vão trabalhar como ajudantes, mas eu tinha uma profissão lá, era arqueólogo, a profissão do meu pai. Eu estava trabalhando, mas consegui juntar um pequenininho e desejei sair de lá", relata.
Mas a missão de
deixar a região é difícil. Atualmente,
a Faixa de Gaza vive um bloqueio aéreo, marítimo e terrestre, que afeta mais de dois milhões de cidadãos. "Como a Faixa está bloqueada todinha, por todos os lados, você tem que esperar na fila
uns dez meses até chegar a sua vez". O tempo pode variar
até um ano e exige autorização de Israel, e, "quando chega a sua vez, eles podem devolver você de volta para a Gaza, porque Israel
não aceitou que você saísse".
Mohammad, não vendo alternativa, teve que subornar um oficial da fronteira para conseguir sobreviver à passagem, que é apenas uma das etapas para sair da região.
"Tem que passar pela fronteira com o Egito. Eu saí porque eu paguei 1.800 dólares [R$ 9.075]. Não sei para quem vai [o dinheiro], mas vai para aqueles que trabalham lá para facilitar um pouco. Um pouco, não é muito. Eles colocam você para sair daqui a uns 3 semanas. Aí você vai lá, tem um processo que vai durar uns 5 dias para você cruzar a passagem só. Você passa o ponto na Faixa de Gaza, depois pelo governo palestino, aí você vai ao Egito, e no Egito você demora muito. Se Israel aceitar, você entra", explica Mohammad.
Desde a vitória do Hamas nas eleições locais em 2006 — obtendo 76 das 132 cadeiras do Conselho Legislativo Palestino — relata Mohammad,
Israel controla a entrada e saída de insumos básicos, como água, energia e alimentos. No caso de eletricidade, "costuma durar oito horas por dia, mas geralmente é de quatro a seis horas. A água, vem por duas horas e ficamos sem por doze, e assim por diante."
Em relação a alimentos, Mohammad conta que há uma
distância permitida para pesca, por exemplo, onde pescadores podem acessar apenas seis quilômetros de território. "Depois de seis quilômetros,
ou você vai preso ou te matam. Na maioria das vezes eles matam. Dão um tiro e acabou".
O cenário não muda muito diante das fronteiras do território e escolas que, hoje, são alvo constante de bombardeios por parte de Israel.
"Se você chega perto da fronteira, acho que 500 metros, você vai ser morto. Em um ano, durante a minha vida lá, mataram milhares naquela época. Continuou esse projeto por anos, depois eles cansaram de muitos mortos. Eles controlam a vida das pessoas. Por exemplo, não pode entrar produto de construção, sementes, ferro, madeira, até produto escolar, por exemplo, caneta, papel, grampeador. Você pensa: 'Que coisa idiota estar proibindo isso'. Eles têm outra intenção. Querem acabar com o estudo, acabar com a educação na Faixa de Gaza", critica o refugiado.
No Brasil, dificuldades caminham com a esperança
No Brasil há mais de três anos, Mohammad relata que há discriminação, principalmente por uma
incompreensão do brasileiro em entender o que se passa em Israel e em Gaza. "Eles não entendem a causa e seguem. Não sabem nada.
Se o líder falou, então é assim."
"Eles [brasileiros] falam que [Israel] é o povo de Deus, da Bíblia. Se você estudar a Bíblia direitinho, você vai entender que eles não são. Eles odeiam Jesus, eles odeiam os cristãos, eles tratam cristãos como lixo. Aí eu falo assim: 'Caramba, você está defendendo eles? Vocês estão a favor deles? Vocês amam eles mais que si próprios e não sabem o que eles pensam de vocês?", reflete Mohammad.
Estando em um país distante como o Brasil, as
dificuldades de se comunicar com a família tornam-se ainda maiores. Recentemente, após bombardeios, a rede de telefonia palestina Jawwal afirmou que
quase a totalidade de Gaza estava sem internet e redes móveis.
A situação, que já era difícil, segue piorando. "A internet lá está fraquíssima, só tem sinal de celular de 3G, porque não tem energia, eles nunca tem Wi-Fi (...) eles carregam o celular na bateria de carro."
Em busca de notícias sobre familiares, Mohammad afirma que acompanha principalmente grupos de Telegram e outras redes sociais, e fica ainda abismado quando descobre notícias de bombardeios a vilas civis.
O drama fica ainda maior quando ele descobriu, recentemente, que seus familiares estavam entre os atacados.
"Eu liguei pro meu irmão hoje. Ele falou pra mim que meus tios, todos foram mortos, junto com os filhos deles e familiares. Até o momento, foram 45 mortos. Eles estão matando familiares, não pessoas. A tia do meu pai, a irmã do meu vô, ela morreu com familiares dela. Foram 44 pessoas. O primo da minha mãe, ele morreu com 24 pessoas. O outro primo do meu pai, ele morreu com 16 pessoas. Mais um outro morreu, com 35", completa.
Mohammad caracteriza os massacres
como uma "limpeza étnica", termo cunhado e adotado por todos os organismos internacionais como “um esforço para deixar homogêneo um país de etnias mistas,
expulsando e transformando em refugiados um determinado grupo de pessoas".
Apesar disso, Mohammad diz está tentando se manter forte, "porque eles estão precisando de mim, eu preciso trabalhar, preciso fazer algo para eles, me manter também, porque se eu não trabalho, eu vou dormir na rua".
Diante das múltiplas ofensivas, Israel já traça planos para uma reorganização política da Faixa de Gaza ocupada, o que contraria o Plano de Partição da ONU de 1947, que prevê dois Estados, um palestino e um judeu, convivendo pacificamente.
Diante do embate internacional para negociação de um cessar-fogo, países islâmicos como o Irã e Arábia Saudita se envolveram em negociações,
mas nenhuma política concreta, até o momento, foi praticada. "Os muçulmanos estão sendo controlados pelos líderes, e eles são mais políticos que muçulmanos (...) Israel anda atrás dos Estados Unidos, quem mexe com eles é derrotado. Por exemplo, se você falar 'sou contra Israel, contra os Estados Unidos', você vai ser tachado de terrorista. O que eu fiz?
Nada, mas você é terrorista", completa Mohammad.
À esteira do conflito,
manifestações de solidariedade tomaram as ruas de múltiplas capitais do mundo, se estendendo de Londres, onde
mais de 500 mil manifestantes pediram o fim das agressões de Israel, até o Brasil, em duas oportunidades.
Apesar da penúria, destruição e dificuldades, o sonho de ver a Palestina liberada da ocupação não foge das esperanças de Mohammad.
"[Sobre ver a Palestina livre] eu sonho sim, mas só em sonho. Isso é coisa de Deus, pra mim. Deus quer. Ele entra nesse conflito, manda os anjos dele, manda os soldados dele, e aí, [a situação] vai virar, porque tudo está nas mãos dele", completa Mohammad.